Millôr Fernandes
La Insignia. Brasil, março de 2005.
O futebol, vocês sabem, "é a atividade que transfere a inteligência da cabeça pros pés". Mas não só dos atletas. Os técnicos às vezes se esmeram. Como no último jogo internacional Colômbia-Brasil em que, chateado com o zero a zero (o Brasil entrou em campo no maior salto alto, Luiz XV mesmo) Parreira desabafou: "Quando um não quer dois não brigam". Quer dizer os adversários se trancaram e ele não pode marcar gous (atenção, revisão, pra mim é assim que se escreve o plural de gol.).
"Prezado professor, recentemente ouvi num programa esportivo de televisão que o plural de "gol" é "gois". Não consigo acreditar. É verdade isso? Abraços."
José Luís
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Meu caro José Luís: da mesma forma que o próprio futebol, o vocabulário a ele relacionado veio também da Inglaterra. Assim que o jogo entrou aqui, foi muito rápida a sua popularização; no início, os vocábulos eram usados no idioma de origem, mas logo passaram a dividir-se por dois destinos diversos: (1) uns foram traduzidos: corner, depois escanteio; center-foward, depois centro-avante; foul, depois falta; referee, depois árbitro ou juiz; off side, hoje impedimento; etc.; (2) outros foram aportuguesados, i.é, adaptados ao nosso sistema fonológico: penalty virou pênalte; foot-ball virou futebol; crack virou craque; score virou escore. A ovelha-negra foi mesmo o "goal", que sempre (não é de hoje) causou tanta controvérsia.
Se ele tivesse sido traduzido, como os do grupo (1), seria algo como "meta", que usamos apenas quando "goal" se refere ao arco formado pelas traves e o travessão, mas não ao tento marcado (como no Francês, onde ambos se chamam "but"). Para o ponto obtido, a bola na rede, mesmo, os falantes preferiram conservar o vocábulo original, pronunciando-o à inglesa, mas adaptando-o aos perfis fonológicos e ortográficos do Português. Aí começou o problema; como já apontava Celso Pedro Luft, desde então o vocábulo passa por uma crise de aportuguesamento.
Em primeiro lugar, a grafia "gol" é uma aberração; não existe em nosso sistema ortográfico qualquer vocábulo terminado em "ol" com a vogal fechada; temos sol, rol, anzol, caracol, todos com a vogal aberta. É verdade que temos alguns vocábulos em /ôis/ - bois, dois, depois, pois -, mas nunca é o plural de "ol". Como diz Luft: "Não existe no sistema da língua a oposição /ôl/:/ôis/". Em nome da coerência, ele sugeria que optássemos por uma das seguintes hipóteses:
(1) pronunciar e escrever à inglesa: "goal", "goals" (entre aspas ou grifado);
(2) gol (com o /o/ aberto), plural góis (como sóis);
(3) golo, com o acréscimo do elemento terminal "o", permitindo o plural normal golos;
(4) gou (com a vocalização do /l/); o plural normal é gous.
(5) gol (com o /o/ fechado), plural gols.
As duas melhores escolhas são a (3) e a (4). A (3), golo, golos, é usada tranqüilamente em alguns estados do país e em Portugal; a (4), gou, gous, tem a grande vantagem de corresponder exatamente à maneira como falamos. A (1), goal, goals, já está anacrônica, pois todos os demais vocábulos futebolísticos evoluíram, no léxico do Português, de um jeito ou de outro. A (2), gol, góis (ambas com o /o/ aberto) é completamente artificial: não se pode impor à escrita o que não existe primeiro na fala (quanta gente esquece esse princípio básico!). Finalmente, a (5), gol, gols (ambas com o /o/ fechado), é um bezerro com cabeça de carneiro: não conserva a grafia do Inglês, nem observa a nossa ortografia. Os dicionários a registram porque essa é a sua obrigação, mas isso jamais vai torná-la normal. Em casos de hesitação como esse, geralmente o passar do tempo termina elegendo uma das formas; no entanto, "goal" já está entre nós há quase cem anos e o problema parece tão vivo quanto no dia em que nasceu. Não sei, não: acho que é um daqueles problemas insolúveis para a nossa ortografia, como Guiana, pizza ou cãibra, para os quais não encontramos uma maneira satisfatória de representar por escrito. Abraço. Prof. Moreno
vai catar coquinho....